A PERSONAGEM INACABADA 

 

Sol nascendo e eu olhando para o mar da varanda da minha casa, pensando em nada e deixando as memórias fluírem na minha mente sedenta de ideias para que eu possa escrever as coisas da minha vida, e, assim poder marcar minha passagem com textos que não sei se serão lidos. Nesse pensamento, lembrei de uma estória que iniciei a escrever versando sobre um adolescente e sua impressão da vida, desde a sua interação com o ambiente rural e o início do interesse pelo sexo feminino. Era uma figura que já estava praticamente moldada, um ser que amava a vida e admirava a natureza, embora de temperamento tímido. Ele passava horas admirando a paisagem, especialmente, quando alguns pássaros davam rasantes na água da barragem. Ele tinha uma paixão platônica, por uma prima e imaginava um dia poder namorá-la, e, assim, passava horas pensando na sua amada. Aos dezoito anos para continuar os estudos iria para a capital estudar, e quem sabe entraria numa faculdade, talvez se formasse em biologia e voltasse para a sua cidade para ser professor. Essa estória já contava com algumas dezenas de páginas manuscritas num velho caderno e desapareceu misteriosamente. O mais interessante é que eu não imagino como aconteceu, pois, ninguém certamente iria se apropriar de uma estória boba escrita por um jovem inexperiente. Penso que a perdi em alguma mudança quando fazia pós-graduação em outra cidade. Hoje, imagino que minha personagem talvez fosse um reflexo de mim mesmo, e todo aquele conteúdo escrito foi absorvido pela minha mente e me ajudou a criar esta pessoa que sou hoje. Às vezes penso que nunca escrevi nada, penso até que vivi aquelas linhas. Até mesmo o primeiro encontro real com uma mulher, escrito entre a realidade e a fantasia. Até hoje tenho a sensação física do que escrevi, o tato, o perfume, os cheiros que brotaram daquele encontro acontecido num bordel imaginário com mulheres de todas as raças, tamanhos e belezas distintas. Um cenário de cinema com uma iluminação fraca. As paredes sustentavam quadros de cores berrantes, com motivos que variavam entre um casario colonial, mobília e mulheres seminuas. As lâmpadas desciam do teto e pareciam movimentar-se no meio da fumaça que dominava o ambiente. A música alternava canções entre clássicos da música francesa e música de orquestra, provavelmente americana. Alguns casais dançavam ao som da música que os tiravam do chão e os levavam ao teto em rodopios mágicos. Naquele cenário fantasioso Jean, nome da minha personagem, vislumbrou caminhando em sua direção uma moça que mais parecia deslizar pelo piso. Ela sentou ao seu lado e perguntou o seu nome. A resposta foi imediata seguida pela pergunta do nome da bela dama. Ela se chamava Valerie. Que linda mulher, pensou admirando àquela bela figura fitando os seus cabelos castanhos cacheados caindo no ombro, sua pele muito clara, olhos cor de mel que absorviam a iluminação do local. Seus traços eram finos devidamente harmonizados com o formato triangular do seu rosto. O jovem foi convidado simplesmente para subir. Hipnotizado pelo convite, Jean acompanhou a dama, que logo apanhou a sua mão, e juntos subiram a escada que levavam aos quartos do estabelecimento. A caminhada parecia durar horas. Seria a sua primeira experiência. O quarto era praticamente escuro e num passe de mágica tudo aconteceu. O amor explodiu no coração do iniciante na arte do amor, mesmo após ter pago um bom preço pelo encontro. Ele entendeu aquele momento. Aquela paixão fulminante foi a minha paixão, foi a minha história, tal a força das letras que escrevi descrevendo aquele encontro. Era como se eu vivesse tudo aquilo. Muitas vezes enxergo Valerie em revistas, filmes e em devaneios diversos, mas, nunca na vida real encontrei alguém parecida. Na juventude vaguei em bordéis a procura daquela dama dos sonhos e não encontrei nada parecido. Foi tudo muito único, o seu perfume, o seu cheiro, a sua voz estão perdidos no éter da ilusão e sei que ela não existe. Jean não existe. É realmente duro criar personagens que são seres abstratos. São ilusões à prova do tempo e de tudo. Em alguns sonhos me deparo com Jean e Valerie unidos pela minha vontade. Eles são um casal etéreo, perfeito, a aproveitar o amor ideal que existe na mente dos sonhadores como eu. Nesses sonhos tenho muitos ciúmes de Jean que pode desfrutar de um grande amor. Eles fazem parte do plano da imaginação, e eu estou na vida concreta, mãe das quimeras e das incertezas que nos fazem viver na dureza das pedras do caminho, as quais estamos expostos neste mundo. Quem sabe um dia eu não me transforme em Jean e possa viver o amor que criei numa estória que nunca acabou.