RASTAPÉ DA PASSAGEM

Hoje me veio à memória uma recordação de uma fuga da escola que empreendi para participar de uma exposição do artista plástico Marinho, à época um jovem de menos de vinte anos. Estudávamos no último ano do Colégio e o turno de aula era das cinco às dez horas da noite. Assim, na segunda aula, eu e o amigo Brau pulamos o muro da escola e saímos das instalações do Colégio e seguimos rumo à velha Ribeira onde aconteceria a exposição de arte. O local do evento seria a Galeria de Arte do Gaspar, um lugar onde acontecia exposições de arte de pintores novatos e artistas de vanguarda, e, logo estávamos lá. Na entrada estava o jovem pintor Marinho recebendo os convidados e mostrando suas obras de arte. Os temas das pinturas variavam de marinhas com jangadas, cenários mostrando belas dunas douradas com coqueiros em movimento esvoaçante, pescadores carregando peixes amarrados por cordões, samburás carregados de pescados, e, ainda, rostos típicos do sertão com suas faces duras e grandes olhos azuis denunciando a presença européia naqueles rincões. Havia uma grande tela coberta por um pano preto apoiada numa das paredes laterais. Na recepção foram servidos sucos de frutas da época, dentre eles sucos de caju, pitanga, cajá e manga. Alguns pastéis e canapés foram servidos sendo avidamente devorados pelos presentes. Os convidados eram na sua maioria jovens, mas, também havia a presença de artistas consagrados com Navarro e Gray, e, admiradores daquela bela arte sobre telas, entre eles, Lula e Castilho. Os quadros eram pintados em aquarelas, giz de cera e alguma coisa a óleo. No decorrer da exposição foram feitas algumas vendas e Marinho se dava por satisfeito naquele evento tão bem sucedido. Também, prestigiaram a exposição os roqueiros frequentadores da Rock Store, havendo até uma encomenda inusitada de alguém que queria uma pintura de uma motocicleta com asas voando sobre o Pico do Gibucá. Marinho aceitou o desafio e prometeu a obra para breve. O anfitrião Gaspar estava muito satisfeito com o evento, pois, também vendeu algumas outras peças de arte e se divertiu bastante revendo os amigos de longa data. Eu e o amigo Brau ficamos encantados com aquela exposição e na verdade não tínhamos dinheiro para comprar nada, mas, a nossa presença deixou o pintor feliz. Era sensacional ter a presença de amigos naquele local, comentava o artista com sorriso largo no rosto. No ímpeto de agradar ao jovem pintor, Brau prometeu comprar uma de suas obras. Marinho respondeu que ele não se preocupasse, pois sabia das limitações monetárias dos jovens amigos. Lá para mais tarde, o expositor chamou a atenção de todos e disse que iria apresentar sua obra de arte encoberta com um pano. Salientou que era uma peça especial, ela continha toda a sua energia criativa vinda de sua cidade natal. Logo após ele se dirigiu à grande tela e retirou a cortina que cobria a pintura. O motivo da pintura era uma festa do interior. Destacava-se na parte principal da cena um trio de músicos formado por um sanfoneiro, um zabumbeiro e um tocador de triângulo. Por trás do grupo, havia a pintura de muitos casais dançando e mais ao fundo um balcão, cadeiras, um garçom e algumas janelas. Tudo de uma vivacidade impressionante. Marinho terminou a apresentação da sua tela a batizando de festa no interior e a deu de presente para Gaspar, que surpreso com o regalo agradeceu a nobre gentileza, e, disse que iria colocá-la na sua galeria de arte dos grandes nomes da pintura local, como ele chamava. Um pouco mais tarde era hora de ir embora e voltar para casa. Procurei pelo Brau para voltarmos juntos e não o encontrei. Andando pela galeria me deparei com meu amigo olhando para a tela festa no interior. Ele estava muito absorvido pela pintura e não tive como levá-lo comigo, apesar de chamá-lo, e, dar-lhe um puxão pelo braço. De repente, Brau desapareceu diante dos meus olhos e pude vê-lo na pintura numa cena junto ao bar. Num piscar de olhos vi um novo casal dançando na tela cujo cavalheiro em muito se parecia com o amigo desaparecido. Sem uma explicação lógica lá estava eu dentro da tela. Era uma bela festa que durou até o início da madrugada. Eu e Brau saímos do Rastapé da Passagem, nome do estabelecimento ao qual fomos transportados, e, demos de cara com uma cidade do interior chamada Passagem. A cidade ficava no sertão do estado e era o local de nascimento do artista Marinho. Depois de alguns telefonemas contatamos com as nossas famílias. Em pouco tempo estávamos em casa. A estória que contamos não convenceu a ninguém. Só quem acreditou nela foi o amigo Marinho que logo recomendou a Gaspar que deixasse o seu quadro com um pano cobrindo a imagem pintada. Ele confessou que havia acontecido a mesma coisa com ele, mas ele não deu a devida importância. Esse episódio marcou fortemente a minha vida. Qualquer dia irei visitar a Galeria de Arte do Gaspar e saber de algum acontecimento inusitado relacionado a aquela bela tela do artista Marinho.