SALLE MAGIQUE

O Uonder bar continua aberto para os que lá vão e frequentam aquele local especial, apesar de hoje estar numa área decadente da cidade. O Sr. Tyrone, já com a idade avançada mantém o estabelecimento aberto onde vão pouquíssimos sobreviventes de um tempo mágico, quando a boemia, a poesia e a simplicidade tomavam conta da vida da província e tudo era felicidade. Um tempo onde o ter não era fundamental e todos desfrutavam de uma convivência harmoniosa baseada na simples amizade. Nas minhas lembranças convivo com os tipos da belle époque da minha cidade vivida nos tempos aproximados da segunda guerra mundial quando a vila infante desfrutava de uma convivência com viajantes do mundo inteiro, entre estes comerciantes de algodão e de fumo, profissionais das minas existentes e produtoras de minérios da mais alta valia, empresas aéreas com seus hidroaviões, a pousar calmamente nas águas do Rio Grande e trazer notícias do mundo inteiro. Os imigrantes italianos, sírios, libaneses, dentre outros, constituíram suas moradas nessas terras e montaram um comércio efervescente. Os hotéis, restaurantes e bares foram surgindo para atender tamanha demanda, e, ainda, ressalto a profusão cultural promovida por geniais escritores contistas, poetas, folcloristas e historiadores, conferindo um ar de metrópole cosmopolita admirado por quem aqui chegasse. Nesse contexto estava inserido o Uonder Bar a beira do Rio Grande com uma vista espetacular para as águas azuis, a vegetação do mangue e suas criaturas belíssimas, a conferir cores espetaculares ao céu nas revoadas de pássaros marinhos com seus sons inigualáveis. Naquele bar estava sempre atento e às ordens dos seus clientes o seu dono, o Sr. Tyrone, os garçons Bigode e Gerard a atender com gentileza os pedidos muitas vezes feitos em línguas estrangeiras. Na área externa do bar havia lançamento de livros de poesia, prestigiados pela sociedade em geral, e, também a exposição de quadros de artistas locais. Na sua parte interna, havia a chamada Salle Magique, nome indicado por uma plaqueta de bronze de uns quarenta centímetros. Dentro daquele espaço havia mesas, um bilhar, um pequeno tablado para apresentações com um piano, e as paredes fartamente decoradas com quadros de muitos artistas, mostrando cenas de cidades mundiais, fotos de artistas de cinema, âncoras, timões e ventiladores no teto. A entrada era facultada a quem quisesse ali entrar, mas, poucas pessoas ali adentravam, mas, por incrível que parecesse, estava sempre cheio a partir da noite e funcionava até o amanhecer. Os moradores da cidade preferiam a parte de fora, e na Salle Magique ficavam os artistas, intelectuais e os viajantes, como eram nominados pelas pessoas os estranhos. Numa onda de nostalgia fui ao Uonder bar e me deparei com um lugar decadente, as mesas velhas e quebradas, as toalhas sujas e o seu dono já com a idade avançada. Sentei numa mesa da parte externa até ser abordado pelo Sr. Tyrone que me deu as boas vindas e começamos a conversar. Ele recordou da única vez que estive ali com Gerard, e, para a minha surpresa, salientou a minha arte de contar o fantástico. Depois, falou da saudade que sentia dos tipos maravilhosos, hoje encantados, que frequentavam aquele lugar. Iniciou falando do poeta Lula e seu papo amigo, ressaltando a sua simplicidade. Destacou que ele era um homem culto, amigo de grandes nomes da literatura nacional e mundial, e da qualidade da sua obra literária. Depois, citou Lamare, um tipo bonachão, sempre com estórias na ponta da língua para contar, e, também, da sua facilidade em criar glosas fesceninas. Lembrou, do também poeta e escritor Didi, da sua elegância e de seu sucesso com as mulheres, inclusive, disse que no seu bar ele havia namorado uma atriz americana muito conhecida. Ele confessou que ela saiu de um quadro na parede para conhecer-lhe, após uma apresentação sua tocando saxofone acompanhado pelo pianista Manolo. Dos tipos ainda sobreviventes, disse que Anderson vai ali de vez em quando rever o seu passado e recarregar suas baterias para continuar seus escritos saudosistas publicados nos jornais da cidade. O Sr. Tyrone me convidou para entrar no compartimento mágico. Quando ali cheguei, vislumbrei como de uma vez passada, um lugar esplendoroso. Tudo estava no lugar. Sentei-me numa mesa e, dessa vez, quem apareceu para atender foi o garçom Bigode, perguntei por Gerard e soube que ele anda novamente numa casa de repouso, entendi o recado encerrando o assunto. Perguntei como andava o movimento do bar. Como resposta escutei que em algumas situações os velhos clientes aparecem e fazem uma festa de arromba que vai até o amanhecer. Pedi uma cerveja e fiquei esperando os acontecimentos. Lá para as nove da noite chegaram Anderson e Didi. De repente, assustei-me ao deparar com O Sr. Tyrone na sua plena juventude entrando com os também rejunescidos clientes que sentaram numa mesa perto do balcão. Naquele momento, comecei a perceber uma fumaça invadir o local, era a fumaça de cigarros e charutos de novos frequentadores. Numa mesa do canto estavam Lula, Lamare e um jovem senhor de uns trinta e poucos anos de cabelos presos lisos penteados de lado. Chamei Bigode e perguntei quem era aquela figura desconhecida, é um tal de Garcia, retrucou. Aquela figura se levantou e convidou a todos, em espanhol, para irem a um concurso de poesia na Cidade de Madrid. Naquela hora tive uma enorme vontade de ir junto e fui magicamente transportado com aqueles cavalheiros. Incrivelmente, estávamos numa praça com uma espécie de coreto onde os poetas declamavam suas poesias. Lula e Lamare recitaram algumas poesias em português, sendo aplaudidos por dezenas de pessoas. A finalização do evento, foi a apresentação do Sr. Garcia, que arrancou fortes aplausos da plateia. Em pouco tempo estávamos de volta. Desnorteado com o acontecido, senti que o ambiente ficava mais e mais esfumaçado. Logo começou a música do piano tocado magistralmente pelo pianista Manolo. Comecei a perceber algumas pessoas ficarem quase transparentes como se estivessem sumindo, mas, logo voltavam ao normal. Bigode me trouxe uma dose de absinto e me disse que serviria para eu absorvesse melhor os acontecimentos. Na madrugada, adormeci sobre a mesa e acordei sendo tocado no ombro pelo Sr. Tyrone dizendo que eu fosse embora. Olhei com um ar de curiosidade querendo saber se o que eu tinha vivido havia sido realidade. O Sr. Tyrone com sorriso no canto dos lábios falou que eu era um felizardo de haver passado a noite ali. Na despedida me disse que eu voltasse quando estivesse preparado para mais uma noite na Salle Magique. Sinceramente, ainda não tive coragem de voltar e enfrentar os acontecimentos que superam a racionalidade e transgride a todas as leis vigentes do universo conhecido. Um local para pessoas mais que especiais, defino o Uonder bar.